[silêncio]

O barulho da natureza:

Envelhecer é extremamente silencioso. Desde o crescer dos ossos até o urgir das rugas.
Fazer do silêncio um grande e visitado terraço para contemplar a vida é periodicamente necessário.
Fazer da vida e do seu barulho um rio onde banhar seus silêncios.

Nem toda vírgula dá o tom da coisa

E foi assim, nesse impulso que você deve ser capaz de imaginar, que ela danou a escrever; a digitar. Os dedos frenéticos, as pupilas miúdas, olhos vibrantes. Escreveu como se a vida dependesse disso. Escreveu e apagou as sugestões do corretor automático, que teimava em se meter, atrapalhando o fluxo ao mesmo tempo em que criava fluxos. Escreveu tal qual uma toupeira cava. Tal qual um felino foge. Um corpinho médio de brasileira 1,64, deixando-se dissolver no espaço e tempo para ser só mente. O dedão do pé balançava como se também quisesse digitar, tenso. Que tic patético, pensou ela — que considera as coisas patéticas as mais escrevíveis, as mais dignas de escrevimento.

Eu tenho a voz certa, eu ouço o eco e não agride a minha crítica; tenho a voz perfeita para o que eu quero falar.

E faltou o que ela queria. Sumiu, como um gozo, se acabando enquanto ela introduzia as palavras inférteis. A ideia mesma que foi o mote de todo esse disparo, dissipou-se. E tome-lhe frustração, terça-feira. Boa noite.

O que a gente faz da vida

Eu tô ficando muito boa nisso de viver. Tô me especializando. Fazendo da vida minha mais completa tese. Pena que em algum momento, a gente tem que entregar, né, esse trabalho. Ficaria tão bonito, na estante de uma suposta imortalidade, esse texto inacabado que é viver.

Dos parafusos soltos que a gente vai perdendo

Achei dois parafusos minúsculos perdidos no chão do quarto naquela sexta-feira, enquanto arrumava o armário. Imaginei de onde podiam ter saído. Não cheguei a conclusão alguma, mas guardei-os no pequeno gaveteiro de bijuterias. Varri o quarto, limpei toda a mobília. Esqueci-me dos parafusos. A essa altura do campeonato, as teias de aranha que se acumulavam nos cantos do teto me incomodavam mais que qualquer coisa. Os boletos vencidos me incomodavam mais que qualquer coisa. As propagandas de coaching e vida plena me incomodavam mais que qualquer coisa. A falta de tato diária das pessoas me incomodava mais que qualquer coisa. As notícias… me incomodavam mais que qualquer coisa.

Deixei os parafusos guardados. Eles não estavam fazendo falta em nenhum lugar, não.

Quarta-feira

Pense numa mulher saudosa a quarta-feira de cinzas. Ela bate em tua porta com penas imensas; desbotada, borrada, ela bate forte. Toda quarta-feira é de cinzas. É o naufrágio no meio da semana tempestuosa. Na quinta, porém, a gente já começa a enxergar uma terra a vista. A quarta, não, a quarta é cinzenta. Na quarta, a semana já passou pela metade; é o copo meio cheio, meio vazio. A quarta lembra a gente de tudo que já deu errado e antecipa tudo que ainda pode dar. Não tem frase motivacional para a quarta-feira.

Se putaria fosse americana, putaria importada era bacanizada

Putaria só é cool quando é em inglês. O funk é putaria vulgar aportuguesada. Putaria só é vulgar, aportuguesada. Ou latinizada. Engraçado que não existe pecado do lado de baixo do Equador, mas só-que-sim. Digo isso por que é curioso como – para além da nata(azeda) pseudointelectualizada que enche a boca para dizer que funk ou pagode ou etc é lixo – o brasileiro médio tem ranço da erotização presente no funk carioca (que pego aqui como exemplo), mas passa pano pra hiphop-pop estrangeiro, como se a capa da língua que não é a nossa deixasse mais vestida a pornografia que é cantada.

Crônica de bolso

Ele levava nós dois no bolso todos os dias quando saía de casa. Levava a casa toda nos bolsos da calça; um tantinho também naquele bolso da camisa de botão. Enchia de histórias e certezas e sonhos e planos e vontade de voltar assim que batia a porta. Voltar e se jogar no sofá. E o não-fazer, tão bom quanto fazer qualquer coisa. Levava também algumas chaves, moedas, papéis termo-sensíveis com números pouco sensíveis, carteira e algumas dúvidas. Eram bolsos imensos, quase infinitos…

Notas mentais I

Gente fardada que só tem um assunto. Gente que não consegue ser natural. Os deboches mentais que a gente faz no cotidiano e fica só pra gente – isso é maldade, mas maldade que não foi externada, pelo menos. Quando o campo de visão pega e ninguém percebe aquela idiossincrasia alheia, só você. Querer ouvir uma música que ainda não existe. O sol pelas frestas da persiana é sempre uma imagem belíssima; além da persiana, as coisas podem não ser tão bonitas assim.